15.3.10

Mulheres II: Quando acordam

-Todos os contos

Este conto é um trecho do livro "Memórias de um Perdedor", em breve nos melhores botecos.

Quando acorda, olhinhos fechados, Nathália tem cara de azul, gosto de esperança, cheiro de paz. Me lembra incenso queimando. Viajo longe... Fico olhando seu rosto, tentando ler uma história, mas sua pele macia não tem rugas e nem verbos. Só farejo vestígios de uma boa notícia, meu instinto jornalístico é mais forte que minhas desilusões com a profissão. Ela bate o despertador e volta pro sono. Murmura, cansada, quase pedindo:

_ São seis ainda, vou dormir mais meia horinha...

Tudo bem, meu anjo, durma quanto quiser, enquanto isso, peço pra dEUS(se eLE existir), que estique essa meia hora em um dia, pra que essa menina possa descansar de todo uma vida, pelo menos dessa vez.

Seus cabelos são lisos, negros, olhos puxadinhos, boca carnuda, parece índia. Só um ano mais velha, mas toda uma vida na minha frente. ELA: trabalha desde os dezesseis. EU: me desfaço em lágrimas e borro as calças por um estágio de duzentos reais ao mês. Se mantém na cidade com nove horas diárias de trampo numa empresa de suco em pó. Embalam de tudo por lá: suco, sonhos, lágrimas e suor dos operários, desidratam, tiram toda água e humanidade e depois deixam os funcionários voltarem sentindo um buraco em seus corpos. Nem passa em casa, vai pra aula, vender seus sonhos em troca de “comunicação social com habilitação em jornalismo”. Fala comigo e o tempo para. Meiga, quase uma menina, com histórias que deixariam todas minhas noivas neuróticas a ponto do suicídio. Gosto de ouvi-la. Quando chega em casa vira suco.

_Eu falo demais, né?

Não, linda, adoro te ouvir, você me fez voltar a escrever depois da síndrome de pânico, da hipocondria e do coração partido. Parece que eu não escolho mulheres ou pretendentes, mas boas histórias. E você é cheia de boas histórias, me conte uma, vai:

_ Tinha uma indiazinha que morava na quebrada de São Paulo, Freguesia do Ó .
_Como chamava essa indiazinha?
_Hum... Chamava Iracema!
_A virgem dos lábios de mel?
_Não, nada mais de virgem, os pais não gostavam da ideia, mas ela transou com um namorado legal, até, aos dezessete anos...
_E o que fazia essa indiazinha? Caçava, pescava? Fazia artesanato?
_ Não, artesanato é coisa de hippie. Trabalhava e estudava!
_ Hum... Que mais?
_ Bom, um dia, cacique bateu na sua esposa e a indiazinha partiu pra cima dele
_Jura?
_ Sim, dizem que era de uma tribo de amazonas guerreiras.
_Certo, certo,que mais?
_ Bom, deixa eu ver, o irmão da indiazinha, resolveu virar mulher...
_ E aí?
_Aí, o cacique o expulsou da aldeia, mas sua mulher não deixou. O cacique saiu de casa, e sua mulher cortou os pulsos.
_ (...*) É um mundo horrível, não é?(...) Vem, dá um abraço!

O mundo é horrível e ela me abraça, enroscada no meu corpo, mas quem precisa daquilo sou eu. Naquele emaranhado o (quase) homem de um metro e oitenta é, na verdade, embalado pela menina-mulher de um e sessenta e quatro. Ela aninha a cabeça no meu peito e sua respiração na minha pele faz um bem danado.

_É, a tribo só se reuniu quando Iracema foi estudar fora. Aí, um dia, um homem mau a parou na rua. Ele tinha nos olhos toda a cólera dos novos tempos. Toda raiva sem sentido que as pessoas frustradas carregam. Assaltou-a e tentou violentá-la. Falou e fez coisas horríveis. Ela nunca pôde falar pro cacique ou pra mãe.
_ (...*)(...*)Os homens são uns animais, né? Deviam ser todos castrados... (...*) Ela não ficou com trauma de sexo?
_ De sexo não, mas ficou com medo de sair de casa por um ano...
_ E aí?
_Aí, ela encontrou um louco que pensava que era príncipe, um bufão. E ele animou sua vida, enquanto as cicatrizes fechavam.

Sou um palhaço triste, já escrevi e repito, agora, você me tirou dessa. Obrigado. Olho pra sua cara, seis e meia da manhã. O primeiro ônibus passa sete e vinte e leva até o centro. O segundo você pega quinze pras oito. Volta direto pra aula às sete da noite. Amanhã, vou pensar que sou uma franga com medo da vida e você é forte como ferro. Mas agora, só olho pra você, abraço seu corpo, e peço que dEUS transforme sua meia hora de sono num dia inteiro.

*(...) = Silêncio da vida real.

***
-Leia também "Mulheres I: Anjas Tortas"
Foto: Eloisa G


Quando acorda, Ana tem cara de vermelho. Faz barulho, um barulho estranho, meio perdida. Quando volta ao nosso planeta, é toda um sorriso bonito, gosto de curiosidade, cheiro de auto-estima, parece criança feliz, descobrindo o mundo com uns olhões arregalados. Nunca transamos, mas adoro acordar com ela ao meu lado. Sentir seu corpo inteiro junto ao meu, todo branco, cheio de pontas vermelhas. Ela beija minha boca com gosto, diz que é boa porque babada.
Ana gosta de meninas e gosta um pouco de mim. Já gostou mais, mas ainda somos amigos. Nunca cheguei nem perto da sua virgindade. Ela só dorme com mulheres, diz que casa virgem. Pelo menos, de homens. Beijo cada dedo do seu pé e ela fica louca, se contorce. Depois pratica com a namorada, diz que a iniciei nos “prazeres do pé”.

Completa em sua ingenuidade.

Às vezes, ficamos horas na cama, nus, beijando corpos, átomos, células e futuros cadáveres. Todo mundo é um necrófilo por antecipação.

Um dia beijou o professor de literatura, agora têm um caso. “E a gente, Ana, o que nós temos??”
Não sei se te amo, se vou te amar ou se te amei. Sei que gosto muito de ficar com você. Um abraço seu cura minha carência, meu medo da vida, meu medo da morte. Nos teus braços, sou imortal por um instante. No teu abraço, uma eternidade supérflua.

Ela ainda fica comigo, porque sou o único que não me apaixono por seus cabelos cor de fogo. Todos, homens e mulheres estão aos seus pés. Eu também estaria se não fosse cego e louco. Um perdido na vida, não faço por mal. Ela sabe disso e se diverte. Deixa que eu beije seu piercing no mamilo, puxo com os dentes, coloco a mão no meio da suas pernas. O telefone toca. Uma “EX”. Primeiro minha, e depois a dela.

A minha quando acorda é verde, tem cheiro de braveza, mas gosto de desafio. Sonhei que um dia as duas se beijavam. Não importa, a Ana sai voando pela sala e volta no dia seguinte, até que eu enjoe das preliminares e ela enjoe de barba. Então cada um de nós vai procurar dormir com uma mulher diferente. E a história acaba assim.

***

Quando acordo sozinho a vida parece cinza, tem gosto de vazio e cheiro de solidão. Abraço forte o travesseiro e fico acordando com falta de ar. Sozinho, de cueca, o mesmo pesadelo de sempre, sinto como se fosse morrer e me cago de medo. Sou mais um perdido numa noite suja. Só. As mulheres com seus sorrisos preenchem meu eu. Sou viciado em seus hormônios e, sem seus encantos, só brEU.
Só.
EU

“De perto nem os anjos têm asas.”

Leia também:
-Milagre na Rua Augusta
-Sim, eu já tentei matar o Paulo Coelho
-Amor em tempos de Aids

8 comentários:

Anonymous disse...

Cara, adoro vir aqui e ler o que você tem pra escrever. Não costumo comentar - falta de hábito mesmo - mas sempre que posso, acompanho seus textos. Abraço! E to esperando por mais coisas :]

Frico disse...

Oi, Anônimo. Quem é vc? Obrigado pela força!

Anonymous disse...

Na verdade, é anônimA, rs. Me chamo Yasmin e sou capixaba. Abraço!

Anonymous disse...

Mandou bem garotão!
Ass: Pantera
(coloquei anonimo para facilitar: malditos computadores do caralho!)

Mariana disse...

Lindo.

Filhas da Pagu disse...

Massa Fred! Massa mesmo. Quando o livro estiver pronto me convide para os melhores botecos. É bom que os homens escrevam com verdade. Bom para todo mundo.

PS: Quanto ao meu, acabei respondendo no meu blog. Mas está na Cultura!

Beijos e obrigada ;)

Renata disse...

Gosto muito desse texto!

Frico disse...

1)Yasmim. Sempre que quiser comente! Os comentários são um grande incentivo para escrever. Obrigado!

2)Oi, Mariana. Vc viu que republiquei seu trabalho aqui, né? Obrigado pelo comentário!

3)Karol, Pantera, Renata. Valeu!!!! =)

Related Posts with Thumbnails