22.5.08

"A Vida dos Outros", Florian Henckel von Donnersmarck


Alguns filmes são mais do que bom entretenimento. Não que haja algo errado com o entretenimento. Adoro filmes do Tarantino e tenho fascínio pelas gangues do cult “The Warriors”. Mas quando você desperta daquelas duas horas de transe e sente-se mudado, ganha algo mais do que bons momentos de diversão. “A Vida dos Outros”, filme do alemão Florian Henckel von Donnersmarck, se passa na Alemanha Oriental, em 1984. O país, separado do lado ocidental pelo muro de Berlim, vivie sob uma ditadura comunista que usa um sistema de vigilância e inteligência para oprimir a população. Todos os artistas são observados pelo Estado e precisam de sua aprovação para criar. Quem fala demais acaba na “lista negra” e é proibido de trabalhar. Impressionante como a liberdade da arte incomoda o “preto no branco” dos sistemas autoritários. Eles tentam transformar os artistas em, como disse Stálin, “engenheiros da alma”. Mas arte não tem nada a ver com engenharia. Você não escreve uma boa peça porque te pediram um planejamento exato sobre um tema, você escreve uma boa peça porque “precisa escrever aquilo.”

Nesse cenário, o Ministro da Cultura se apaixona pela namorada do famoso dramaturgo Georg Dreyman, a bela Christa-Maria Sieland. Ele pede que o capitão Anton Grubitz encontre provas de que Dreyman é um inimigo do estado, pretendendo assim eliminar o concorrente sentimental e ficar com Cristina. Para o caso, Grubitz escolhe o sistemático agente Gerd Wiesler, fiel ao sistema, exímio interrogador e professor na faculdade “dos novos agentes de segurança”.

No princípio do filme, Wiesler é mostrado como o “mal”, professor rigoroso, desconfiado de Dreyman e interrogador frio. É ele o primeiro a suspeitar do artista, não Grubitz, que é mais burocrata que idealista. Mas em “A Vida dos Outros”, como em toda boa obra de arte, não existem bons nem maus. Existem seres humanos. Wiesler acredita cegamente no comunismo, mas em meio à investigação vai começar a desconfiar das reais intenções de Grubitz e proteger Dreyman. Christa ama o escritor, mas mesmo assim é coagida a manter relações sexuais com o ministro Bruno Hempf. Mesmo assim ela não é mostrada como “sacana”, é frágil, insegura, depende de um remédio que arruma secretamente de forma ilegal. Dreyman é um dramaturgo que fica em cima do muro a maior parte do tempo. Quer manter uma boa relação com o estado, mas é amigo dos intelectuais de oposição. Só resolve agir quando seu amigo pessoal, o diretor de teatro Albert Jerska, se enforca por estar proibido de trabalhar. O agente Wiesler é o personagem que sofre a maior transformação durante o filme. Não tanto uma transformação de caráter, mas uma transformação aos olhos do espectador. Ele não é o carrasco que parecia no começo. É um homem comum, que acreditava servir uma causa justa, que acreditava estar “cumprindo seu dever”. Afinal, na teoria o comunismo é um sistema “justo”, não é? Quando ele percebe que está sendo usado para uma missão pessoal, Wiesler passa a omitir informações que consegue com suas escutas. Ele protege Dreyman até o final e tenta convencer Christa a parar de se encontrar com o Ministro Hempf. É um homem sozinho, tentando fazer a coisa certa, não para ser um herói, mas porque ela é a única coisa ser feita. Como Oskar Schindler(o industrial polonês que salvou mais de 1000 judeus), do filme de Spielberg, Wiesler não pode aceitar a injustiça do sistema ao qual ele mesmo faz parte.

“A Vida dos Outros” não é uma crítica ao socialismo ou à outra forma de ideologia. É um filme sobre o totalitarismo( seja ele nazista, capitalista ou socialista) e a esperança no homem. Como o homem pode criar regimes hediondos, no qual acha que tem direito sobre a liberdade alheia é difícil de entender. O livro em quadrinhos Maus, de Art Spiegelman, ajuda a compreender como a vida comum das pessoas pode se tornar um inferno, como seu vizinho pode ser tornar seu inimigo. Maus fala sobre o regime nazista, instaurado na mesma Alemanha de “A Vida dos Outros”, cinqüenta anos antes. Num regime de força, quem está no poder acha que tem direito a tudo. Como num regime em que o dinheiro é o mais importante, o rico pode comprar tudo. O ministro Bruno Hempf acha que tem o direito ao corpo de Christa-Maria Sieland porque ele tem o poder. E no começo ela cede ao poder e traí o namorado. Não basta o amor e o talento de Dreyman, ela precisa da “proteção do estado”. È como aquela história clássica do cara que compra uma noite de amor com a mulher do outro por um milhão de dólares. Se você perguntar pra qualquer um numa mesa de bar, a maioria dos caras cederia sua esposa por um milhão de dólares, ou pela metade desse valor. A maioria das mulheres também. E assim o dono do poder continua achando que tem direito a tudo. À sua mulher, à sua liberdade, à sua alma.

O final de “A Vida dos outros” aposta na esperança no homem. Parece que vai se perder num excesso de “explicações”, mas acaba com uma cena humana, demasiadamente humana. Na figura de Wiesler, seu “anjo da guarda” que continua sua vida como um pacato carteiro, Dreymar encontra sua inspiração para voltar a escrever. Com todos os erros que cometemos, é difícil ter esperança na raça humana, mas ainda podemos esperar algo dos pequenos homens e dos seus pequenos atos anônimos.

22/05/08

3 comentários:

Bárbara dos Anjos Lima disse...

O filme é realmente muito bom. Quando saí do cinema fiquei bem emocionada. Faz eu reforçar minha crença em seres humanos.

eduardo disse...

Filmão mesmo! Mereceu o Oscar! E ótima resenha, Fred. Aquela cena do suicídio da mocinha, depois de dedurar o escritor, foi uma das coisas mais trágicas e comovedoras que eu vi no cinema nos últimos tempos. E achei que o filme é magistral ao ir transformando aos olhos do público, e bem aos poucos, um cara que parecia um "vilão" insensível e cruel num humilde "salvador" de bom coração, sem que essa "metamorfose" pareça forçada ou inverossímil.

Frico disse...

Opa! Elogio do Eduardo "o rei das resenhas". "Chorei, querido, chorei", como diria o Lacaz.

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