25.2.08

Amor em tempos de AIDS.

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Reportagem de Brando Trevisan para o Diário do Fim do Mundo.

Levantei sentindo-me jornalista uma vez na vida. Foi um dia qualquer em um junho nublado, triste e frio. Tava com dor no coração, mas suspeitava que fosse só um pouco de frescura. Arranquei a artéria aorta direita e coloquei num potinho de vidro escrito “alma”. Alma?! O que aquela porra tava fazendo ali? Era pra ter vendido fazia tempo... Dei uma olhada nos classificados: “Hum, ninguém anda pagando bem por almas de jornalistas. Tá certo, quando eu acordar sentindo-me médico tento vende-la por um preço melhor”.

Fui ao banheiro, era rosa e tinha bidê. Sentei na privada e pensei na vida inteira. Eu e Tarsila conversando. Dizem que a vida passa inteira diante dos seus olhos quando você vai morrer, a minha passa inteira diante dos meus sempre que sento para evacuar. Não há lugar melhor para meditar que uma latrina. Passo dois: bidê. Banheiro é um bom lugar para ficar só. Queria morar num banheiro para sempre. Saí de lá, peguei o colchão e o travesseiro e arremessei tudo perto do chuveiro. Quem precisa de quarto quando se tem pia e chuveirinho? Aquilo sim ia ficar bom, um ambiente íntimo em fim... Onde eu tava mesmo? Saco! Drogas fodem tua memória, mas vamos lá: Nasci na metrópole, fui pro interior, tomei um soco na cara na quarta série, tive cachumba com dez anos... Ah sim!
“Fui ao banheiro, era rosa e tinha bidê. Sentei na privada e pensei na vida inteira. Eu e Tarsila conversando:”
_ Brando preciso de espaço, você me sufoca.
_ O problema é sexo?
_Você gosta muito de mim, querido! Eu não tenho certeza do que sinto por você...
_O problema é sexo?
_ Acho que eu não estou preparada para um compromisso tão sério, tenho medo de não corresponder às suas expectativas...
_ O problema é sexo?
_ Brando, você sabe que pra mim isso é um mero detalhe, a questão é que eu não sei o que sinto ao certo. Eu sou tão complicada...
_ Se o problema não é sexo, eu posso te tratar mal, então.
_ Não é isso, meu querido, as mulheres precisam de segurança. Elas precisam ser amadas, mas...
_ Então, o problema é sexo.
_ Ah! Vocês homens nunca vão entender...
_Você ta virando lésbica, Tarsila?
_Quem, sabe, mon amour, quem sabe...
_ Saco, o problema é sexo, então.

Debaixo de toda psicologia, todas as angústias e incertezas o homem é um animal movido a duas coisas: desejo de se reproduzir e medo de morrer. Era isso, a vida para mim passava em preto e branco. O segredo era arrumar alguma coisa que se gosta para fazer. Cocei minha careca: eu era durão, tinha uma boa pegada e tal, mas gozava rápido e tinha um pau médio. Tarsila não podia suportar aquilo, a sacana ficava com toda aquela história sentimental, mas eu sabia que tudo dependia de um orgasmo. Afinal, eram seis meses sem um mísero orgasminho. Um gozo se quer. Nada! E eu tentando de tudo: língua, dedo, fios de cabelo e massagens tântricas. Sempre aquele final frio; eu uivando de prazer e ela olhando pra minha cara com o semblante de: “Patético, já acabou o escândalo, mocinho”? Fechava os olhos e dormia logo em seguida. Sentimento de impotência, preferia ser brocha. Agora, ela namorava a Ana, uma lésbica linda de cabelos ruivos. Devia gozar borbotões com aquela língua molhada em suas coxas. Eu nada. Sentado na privada, pensando na vida, imaginando um diálogo que nunca chegamos a ter. “O PROBLEMA É SEXO”? Porra, se o problema não é sexo então fiquemos mudos e nus pelo resto da vida, tudo mais não me importa. Agora sou um zumbi a serviço do jornalismo objetivo. Levantei do banheiro com a bunda molhada e limpa, cheirei uma carreira de pó com aroma de massa corrida. Não se fazia mais cocaína como antigamente.

Vejamos o que se deve cobrir nesse mundo caótico. Com certeza seria mais algum maluco-neurótico-freakie querendo seus quinze minutos de fama. Saco, deixem-me em paz! Pensei em inventar uma matéria sobre um cara que estava leiloando seu corpo para um canibal, só que lembrei que tinha acontecido de verdade: não havia espaço para poetas no mundo de sonhos em que vivíamos. O que seria de Allan Poe no século XXI? Mais um repórter retratando o dia-a-dia, meu Deus! O homem comum era, cada vez mais, um personagem de histórias fantásticas. Ta certo, vejamos a pauta. Ai, saco, de novo! Tenho que pegar o exame de HIV. Trepei sem camisinha. Mais uma vez! Jurei que a Tarsila ia ser a última. “Eu te amo” para mim tinha cara de “Eu sou HIV negativo”. Puta, cara ingênuo, sou durão só com os entrevistados, na vida não passo de um banana com pau médio e que goza rápido. Puta, bostão! De que servem todos esses livros na estante e essas idéias na cabeça, se não consigo ficar dentro de uma mulher quinze minutos consecutivos? PUTA SACO DE NOVO E DE NOVO! Será que eu tinha rodado dessa vez? Transar sem camisinha é uma roleta-russa. Ninguém anda com um crachá escrito “soropositivo”. Nem eu. E se o resultado fosse positivo? Quantos anos iam me restar? Ia morrer sem ter filhos, sem escrever um livro. Pelo menos plantei uma árvore. E escrevi jornalismo. Posso adotar um moleque. Ai, que fracasso! Vida desgraçada!
E pior, como eu ia saber se tinha dançado com a “fulana” ou com a Tarsila? Ia ter que ligar pras duas, perguntar, pedir para fazerem o teste, me expor. Pára, Brando, pára! Nada disso, você está saudável, primeiro fazer a matéria e depois pegar o teste. Vamos ver, a pauta deve ter chegado por e-mail. È isso, vamos ligar o computador e ver o que nosso querido editor nos mandou.

“Bug Chaser”. Putz, informações em inglês vindas da revista Rolling Stone. Será que era matéria musical? Saco, odeio rock n’ roll, cara! Será que não podiam me mandar alguma coisa de esportes ou algo do gênero? Quem ta ligando pro rock n’ roll? Acho que nem os adolescentes dão importância mais! Vamos lá: O que significa isso, mesmo? Inglês enferrujado pra burro, hum...

“Nova febre no underground gay: os bug chasers são adeptos de uma prática que consiste em transar sem camisinha com a intenção de se contaminar com o vírus HIV. Eles chamam o vírus de “a dádiva” ou “o presente” e disputam a tapas parceiros que possam contaminá-los. A emoção está em transar sem camisinha, nunca sabendo se foram contaminados naquela noite ou na próxima. Existem milhares de sites e grupos de bate-papo na internet que estimulam e discutem essa prática. O fato de os coquetéis aumentarem a qualidade e o tempo de vida dos soropositivos é um fator estimulante para esse perigoso fetiche”.

Grande e santo, SACO! Parei de ler, fui ao banheiro e vomitei. Aquilo era brincadeira, né? Justo naquele dia! Eu morrendo de medo do resultado do teste de sangue e minha querida editora me presenteia com uma matéria daquelas? Sacana, eu podia matá-la se não fossem aqueles pezinhos lindos. Pés pequenos, com unhas vermelhas em sandalinhas pretas usadas sempre com saias e minissaias. Eu nem olhava pra cara dela enquanto a ouvia falar. Só tinha olhos para aquele par de pés e seus dez dedos livres de meias ou sapatos. Eu podia chupar aqueles pés por horas sem nem tocar no resto do seu corpo. Uma mulher com um poder daquele não podia ser assassinada a sangue frio. Droga, mas aquela matéria tinha me deixado nervoso. Como alguém conseguia ser tão doente? Vamos ver:

“Há clubes espalhados pelos Estados Unidos em que a prática do sexo sem camisinha é estimulada. São realizadas orgias em que diversos homens se penetram sem proteção. O medo e a adrenalina estimulam esses homens a por em risco a própria vida. ‘Tem pessoas que praticam roleta russa, tem gente que pula de pára-quedas, nós só queremos emoções fortes’”. Emoções fortes? Filhos da puta! Deus deveria trocar cada criança nascida soropositiva por um maluco desses. Eu estava no Brasil, agora, aonde iria achar um desses dementes? Internet, certo, a rede era responsável por noventa por cento dessas taras estranhas.

Peguei um pouco de café na garrafa térmica. Estava frio, mas bem forte como eu gostava. Enchi de açúcar e creme. A cozinha estava uma bagunça: comida natural, drogas sintéticas, hambúrguer de soja. Que zona dos infernos! O Francis tava babando no chão. Era um buldogue gordo que tinha esse nome em homenagem ao Paulo Francis, meu herói num jornalismo sem firulas. Paulo Francis morreu de tanto fumar. Eu podia morrer de tanto cheirar. “Viva rápido e deixe um cadáver jovem e bonito”. Eu tinha cabelo raspado pra disfarçar a careca e os fios brancos. Olhos azuis pequenos que ainda chamavam a atenção de mulheres suicidas. Meu corpo não era dos piores; quase trinta e nenhuma barriga. Fazia cem flexões, dia sim, dia não, e meditação uma vez por semana. Se eu parasse de tomar pílulas talvez voltasse com a Yoga.

Certo, enchi um copo com café preto e abri a geladeira. Estava quase vazia, mas tinha o que eu precisava. Doce de marolo. Sim, um doce mineiro delicioso que eu comprava sempre que voltava pra minha terra natal. Num mundo high-tech nada como manter um pouco das raízes. E eu tinha raízes, não importava que elas estivessem bombeando seiva podre e viciada para o resto do meu corpo. Agora, mãos a obra, um jornalista nunca pode ficar parado!

Sentei ao computador, conectei a internet. Digitei as palavras mágicas: “Malucos por HIV”, nada. Fui colocando um a um os termos em inglês. Comecei uma busca por fetiches na rede mundial de computadores: Incesto, zoofilia, sadomasoquismo, estupros. Tinha gosto para todas as fantasias bizarras na rede. O anonimato é um passe livre para nossas fantasias animalescas. Tinha um professor de Yoga que dizia que acabando a luz elétrica do mundo o homem voltaria a ser bicho. Aí, seria cada um por si.

Fotos de mulheres posando de meninas, com roupas de colegial e poucos pelos pubianos. Velhas trepando e grávidas sendo possuídas por dois caras. Porra, imagina o filho dessas mulheres? Meu Deus, em que mundo vivemos? Salas de bate-papo gays: “E ai, podrão, quer me foder?” Podrão? Achava que os gays eram mais sensíveis e românticos. Acho que ao invés dos homens aprenderem com as mulheres e os homossexuais, todo mundo foi contaminado por nossa brutalidade e testosterona. Era péssimo, um mundo sem sentimentos. Não senti tesão com todo aquele sexo explícito, mas continuei. Recebi propostas para mijar em cima, comer maridos e mulheres, espancar e estuprar. Cada sala de bate-papo, cada clique do mouse me levava para um mundo mais obscuro. Bare backing. Era isso, o nome da prática. Uma descrição da filosofia dos caras em um site: “Eles acreditam que ao disseminar a Aids e torná-la a regra, não a exceção, estarão poupando a si mesmos e a comunidade do medo da infecção e das preocupações com o sexo seguro. Uma lógica invertida graças à possibilidade atual de convivência com a doença”. Cara, em que mundo a gente vive? Eu tava rezando para aquele exame dar negativo e os caras torcendo para serem infectados. “Convertion party” era o nome da balada deles: “O dia da transformação”. Um anúncio num site homoerótico: “Procuro por Gift Givers. Tratar com Carlos, e um e-mail.” Gift Givers eram os caras que se dispunham a contaminar os outros. Muito caridoso, anotei o e-mail do cara e fui procurá-lo em um programa de mensagens instantâneas. Fácil de achá-lo no MSN: “CarlosBugChaser”:

Brandojornalistadocaralho fala pra CarlosBugChaser: Descobri teu endereço num site de Bare backing!
CarlosBugChaser fala pra Brandojornalistadocaralho: Você é entendido?
Brandojornalistadocaralho fala pra CarlosBugChaser:Sou um curioso...
CarlosBugChaser fala pra Brandojornalistadocaralho: Policial?
Brandojornalistadocaralho fala pra CarlosBugChaser: Jornalista...
CarlosBugChaser fala pra Brandojornalistadocaralho: Ah! Achei que você estivesse afim...
Brandojornalistadocaralho fala pra CarlosBugChaser: Você ainda ta procurando um Gift Giver?
CarlosBugChaser fala pra Brandojornalistadocaralho: Na verdade eu estou sempre na procura, nunca sei se fui contaminado ou não. Não faço o teste há um ano. Prefiro ter a ilusão de que cada noite vai ser a minha primeira noite. É como estar sempre perdendo a virgindade.
(Veado, maluco).Respirei fundo.
Brandojornalistadocaralho fala pra CarlosBugChaser: Você pode me dar uma entrevista?
CarlosBugChaser fala pra Brandojornalistadocaralho: Você vai publicar meu nome/ fotos?
Brandojornalistadocaralho fala pra CarlosBugChaser: Tudo depende de você...
CarlosBugChaser fala pra Brandojornalistadocaralho: Quero privacidade, sou professor universitário, não posso me expor assim...
Brandojornalistadocaralho fala pra CarlosBugChaser: Professor do que?
CarlosBugChaser fala pra Brandojornalistadocaralho: Filosofia...

Filosofia? Filosofia? Caramba! Um mundo onde os filósofos brincam de roleta-russa com a AIDS tinha que ser um mundo muito doente mesmo. E eu preocupado com meu relacionamento com a Tarsila... Parecia que ela estava ali, na minha frente, conversando comigo:
_Oi, amor, aonde a gente errou?
_Você sabe que nós nunca tivemos essa conversa, Brando.
_Sei, Tarsila, a gente nunca conversou o suficiente...
_A gente sempre dormia....
_ Você primeiro, sacaninha.
_ Você me deixava muito cansada, querido.
_Achei que você ficava puta porque nunca gozava....
_Às vezes sim, às vezes não, mas nosso dia-a-dia era muito corrido pra transar ou conversar, era um ou outro e você estava sempre querendo transar.
_Me desculpe, Tarsila, nunca fui cem por cento sincero com você.
_ A gente perde muito tempo medindo as palavras, Brando. A gente perde muito tempo esperando a hora certa e depois vê que a hora certa passou...
_Eu to com medo de morrer, Tarsila...
_Se essa fosse uma conversa real eu juro que te abraçava, querido.
_ Você me ama?
_Não, mas você é um puta cara legal.
_Cê, me amou algum dia, Tarsila?
_ Eu achava que não, mas vendo agora, sim. Afinal, eu não perderia seis meses da minha vida com um cara que não me fazia gozar, se não gostasse muito dele.
_ To me sentindo melhor agora, amor, queria que a gente tivesse conversado isso de verdade.
_ Eu sei, querido, você é um meninão que precisa de colo.
_ Eu preciso de você, Tarsila, aonde a gente errou? Quando isso tudo começou?

Estava com minha cabeça apoiada nos joelhos, sentado no chão, encostado na parede do escritório. Tava me sentindo muito mal e sozinho. Aonde a gente tinha errado? Aonde tudo tinha começado a desandar? Teve um tempo em que havia uma esperança: o rock n’ roll tinha Bob Dylan e John Lennon, o homem tinha chegado a Lua, os estudantes tomavam as ruas de Paris, o cinema estava se tornando arte. Os comunistas achavam que a revolução iria mudar tudo e os capitalistas acreditavam que vencendo os comunas o mundo seria um lugar seguro de novo. Todo mundo tinha uma esperança de que as coisas iriam melhorar. Todo mundo acreditava na raça humana. Havia o budismo, a Yoga e a teoria da libertação. Havia amor livre, pílula, revolução sexual. Vacinas, maconha, LSD, estados alterados da mente. Quando foi que a gente se perdeu?

Quando foi que o sonho acabou?

A nossa geração nasceu na ressaca de tudo isso. Nasci em 1978, num mundo sem Hendrix, Morrison ou Joplin. Quando eu tinha quinze anos já não existia Muro de Berlim, nem comunismo e nem rock n’ roll. O capitalismo tinha vencido e as coisas não estavam melhores. Ninguém tinha mais uma coisa para acreditar, não havia mais um horizonte. As utopias tinham morrido. A AIDS castrou toda liberdade sexual. Amar naqueles tempos se tornou proibido. Tudo virou seco e efêmero. A vida feita de surdez e passividade. Surdez e passividade! Quinze minutos do “novo” eram o suficiente. Propagandas, videoclipes, radiação, poluição, câncer, telejornais, efeitos especiais, tv a cabo. Num piscar de olhos trocaram nossas máquinas de escrever por computadores e os computadores passaram a ser trocados de ano em ano. Nossos velhos videogames e revistas em quadrinhos não valiam mais nada naquele mundo novo. Passamos a andar mais rápido para não sermos atropelados pelo futuro. O futuro chegava tão rápido que não se esperava mais nada dele. Só sabíamos que com todas mudanças, nada de novo iria realmente mudar nossas vidas. Então corríamos rápido e pensávamos rápido, para não lembrarmos que a morte estava chegando. Que cada dia vivido era um dia a menos, em que não fizemos nada de relevante. Só apertamos um monte de botões, e nos finais de semana dançamos uma música nova movidos por drogas e luzes multicoloridas. Porque estamos fazendo isso, eu não sei. Só paro pra pensar enquanto faço minhas necessidades fisiológicas, e tudo o que penso é: “Tarsila, onde foi que erramos”?

Porra, tava com a cabeça no meio das pernas quando o telefone tocou, era minha editora. “Brando, você ta adiantando a matéria?” Sim senhora, sim, senhorita. “Eu tenho uma fonte para você, é um imigrante ilegal nos Estados Unidos, pega o telefone”.

Ta certo, além do cara ser imigrante nos Estados Unidos ele é um Bug Chaser... Babaca completo. As hordas bárbaras invadem o império em declínio. “A história se repete duas vezes: primeiro como tragédia e depois como farsa”, já dizia o velho Marx. Lembro dos meus tempos como correspondente em Washington. Paranóia total! Tinha meros 24 anos e escrevia numa revista de música... Foi logo depois daquele troço das torres gêmeas. O clima era de nervosismo, todo mundo esperava um ataque com armas químicas e o presidente Bush preparava a ofensiva contra o Iraque. 2002, estávamos no século vinte e um e eu no coração do poderoso império, cercado por soldados com fuzis, pessoas apressadas e turistas do terceiro mundo tirando fotos de Abraham Lincoln sentado em sua imensa cadeira de pedra. O império estava em crise econômica e moral. Bill Clinton havia sido quase deposto por causa de uma gulosa e manifestantes erguiam cartazes contra o aborto perto da Casa Branca. Eu fotografava tudo e pensava que deveria escrever um livro. Fazia frio de rachar, minha orelha parecia congelada e eu jurava que nunca mais usaria blusa no Brasil. Nunca tinha enfrentado neve e dezessete graus negativos.

Liguei pro tal imigrante ilegal. Seu nome era Marky.
_ Hello, is Marky there?
_ Just a minute, please... Hey, Marky!
_Hello!
_ Hey, Marky, aqui é o Brando, eu escrevo pro Diário do Fim do Mundo.
_ Ah, sim, eu estava esperando sua ligação, senhor Brando. Faz muito tempo que eu não falo português.
_ Eu sei, mas eu não estou te ligando para praticar conversação.
_ Sim, você quer saber detalhes sobre a minha conversão...
_ Ah, você conseguiu?
_ Fiz o teste há seis meses, estou soropositivo, senhor Brando, estou marcado para morrer!
Ok, era o ponto de tensão, eu precisava pensar rápido e não deixar o cara começar a chorar. Tinha que usar toda a minha objetividade jornalística.
_ Quando você recebeu a “dádiva”, senhor Marky?
_ Provavelmente há um ano, Brando. Eu freqüentei diversas “Convertion Partys” nesse período.
_Certo, o que te levou a isso?
_ Eu me sentia, especial, sabe? Eu era parte de um clube, uma coisa única. Isso me dava muito tesão também. A adrenalina, o medo...
_ E agora?
_ Destruí minha vida, não há um dia que eu não pense que vou morrer. Não há um só dia em que eu não me arrependa por essa decisão.
(Sei como você se sente, cara. Não há um só dia em que eu não me arrependa por ter transado sem camisinha. Isso come meu cérebro, com certeza).
_As coisas não foram como você esperava, então, Marky?
_ Não, senhor Brando. Sinto-me mal com todos esses remédios. É horrível tomar tantas pílulas com horários tão regulares. Fora os efeitos colaterais. A AIDS não é uma brincadeira, senhor Brando. Acho que é isso que você tem que mostrar para os seus leitores. Sexo não é uma brincadeira, em tempos de AIDS.

Sexo não é uma brincadeira? A gente já tem que se preocupar com ejaculação precoce, impotência, tamanho do pau, gravidez, frigidez, DST... Quem foi o desgraçado que inventou a AIDS? Quem foi o filho da puta! “Certo, senhor Brando, sexo não é uma brincadeira”. Desejei sorte pro cara e desliguei o telefone. Comecei a escrever a matéria até a hora marcada para a entrevista com o Carlos.

Era um restaurante chique para a elite paulistana. Nunca tinha levado a Tarsila num desses. Ela era moderninha demais, preferia comida indiana e eu preferia raves onde pudesse comprar doce e ecstasy. O que levava um professor universitário, bem sucedido, com grana para pagar um almoço num restaurante desses a querer se infectar com o vírus HIV? Um cara instruído, ciente de todos os riscos?

_ Eu sei o que você deve estar se perguntando, Brando. Por quê? Eu mesmo não tenho uma resposta. Por que vivemos? Como devemos levar nossas vidas? Não, sei. Eu poderia casar e ter filhos. Eu poderia ter um parceiro estável. Mas isso não me realiza.
_ Você pensa na pessoa que pode estar se contaminando?
_ Todo mundo é livre na vida, Brando. Ninguém é obrigado a nada.
_As pessoas podem se arrepender. Acabei de falar ao telefone, com um garoto arrependido.
_ O problema dessa geração é que eles acham que a vida é um vídeo game. Que após o “game over” eles vão poder voltar a jogar do começo. Só se vive uma vez, aqui e agora! Eu tenho tudo que quis. O jeito que escolhi para viver a vida é testando a morte a cada dia.
_ Como você conheceu o bare backing?
_ Nos Estados Unidos, fiz meu mestrado lá. Freqüentava os clubes undergrounds gays. No começo, era só um fetiche, depois passei para prática. Acho que assim é mais fácil. Com a vida que levava ia acabar me contaminando de qualquer jeito. Se for pra se contaminar, que seja pelo menos por vontade própria! Não gosto de acreditar em destino, gosto de ser agente da minha vida. Sou um homem livre, Brando, por incrível que isso possa parecer.
_ Você não tem medo das conseqüências? Sabe que o coquetel não é cem por cento eficiente, conhece os efeitos colaterais?
_ Eu não quero viver para sempre, Brando. Todo mundo vai morrer algum dia. Eu posso morrer ao atravessar a rua, sem nunca desenvolver o HIV, você pode se contaminar com sua “fiel namorada heterossexual”. A gente não pode escolher quais vão ser as alternativas da vida, mas podemos escolher entre uma delas. Eu escolhi viver no limite.
_ Já fez teste de HIV?
_ Ainda não, prefiro acreditar que cada nova transa, vai ser o dia em que receberei meu “pequeno presente”. É mais romântico e excitante assim. Faz cada noite, ser “a grande noite”. Quantas grandes noites você teve, Brando? Sua primeira? A primeira vez em que teve uma mulher gozando em seus braços? Quantas vezes você sai da rotina? A escolha é sua. Viver rápido e intensamente ou apagar aos poucos...
_ Desculpe, mas o entrevistado não sou eu...
_Eu sei. Tenho um encontro esta noite. Você gostaria de comparecer? Pode fazer umas fotos, sem mostrar nossos rostos.
_Ah, sinto muito, mas tenho um compromisso agora. Muito obrigado, senhor Carlos.

Sai de lá acuado, ele havia dominado a entrevista. Não importava, eu já tinha o que escrever. A matéria iria se chamar “Amor em tempos de AIDS”, o começo ia ser assim: “Aonde tudo tinha começado a desandar? Teve um tempo em que havia uma esperança: o rock n’ roll tinha Bob Dylan e John Lennon, o homem tinha chegado na Lua, os estudantes tomavam as ruas de Paris, o cinema estava se tornando arte....”

Eu tinha que pegar meu exame de HIV, roleta-russa da vida. Toda ela diante de meus olhos. Era como consultar o Oráculo na Grécia antiga, um pedaço de papel que vai definir seu destino. Segui sozinho pelas ruas imundas de São Paulo, acompanhado pela presença invisível de Tarsila. Parei no boteco mais sujo e vomitei todas as desilusões na privada. Um sonho escorreu pelo chão e foi devorado pelos ratos.

Frederico Di Giacomo, 19 de junho de 2005.

Leia também:
-Preto no Branco: Um palhaço triste e uma mina indecisa
-Estudantes de comunicação no Fórum Social Mundial 2005

5 comentários:

Al S disse...

"Os psicólogos se enganam quando dizem que o instinto de sobrevivência é o motor da vida humana. A existência é, acima de tudo, vontade de potência."

Frico disse...

Nietzsche, senhor Alexandre?

Ana Alice disse...

Prefiro Blake: "A Prudência é uma velha solteirona, rica e feia, cortejada pela Incapacidade".
Texto fenomenal.

Danielle Castro disse...

Está melhor que nunca, sr. Kaos. Parabéns pelo texto e pela angustia que passa.

bj
Dani

Frico disse...

Nossa, Dani, quanto tempo, hein? Não sei como vc parou nesse conto, mas obrigado. Volte sempre no blog. beijos

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