Pra que servem poemas surreais, poesia concreta e literatura fantástica? Eu já gostei de escrever poemas concretos. E também já gostei de mulher, hoje só transo homem. Putz, quem eu to querendo enganar? Hoje eu não transo nada, nem homem, nem mulher, não como nem bunda peluda. Sou um perdedor, um maldito fracasso, uma estrela cadente ardendo no espaço. Um cachorro faminto esperando a gorjeta, eternamente caído numa imunda sarjeta.
A vida anda passando a mão em mim, ouvi em algum lugar. Foi uma poetisa. “Parece que quem ta me comendo é o tempo”, ela falou também. Isso eu percebi de longa data, o tempo ta me devorando, e eu aqui: alguns litros de pinga, um punhado de lágrimas, sonhos imbecis, um monte de bosta dentro do corpo. O que eu mais tenho pra oferecer pros outros é isso: bosta.
Escutem essa, meus vizinhos são todos uns pobres de merda. Ficam o dia todo ouvindo música ruim nas rádios Am e nos fins de semana matam um gato e assam. Eu finjo que gosto de pobre, mas tenho nojo. Acho que pobre é pior que cocô de cachorro. Queria morar num mundo onde todas as pessoas fossem bonitas, ricas e cheirosas. Um mundo onde todos morassem em shopping centers enormes e todas mulheres tivessem implantes de silicone. Meu vizinho trabalha de dia e a mãe dele ouve uma rádio evangélica e música sertaneja, enquanto isso. Quando ele chega, à noite, ouve rap e rock n’ roll. Tem um funk que ele gosta assim, ó: “Se dinheiro fosse bosta, pobre ia nascer sem cu”. Poético, um brinde a verdadeira música popular brasileira! Esse é o lirismo dos novos tempos! To de saco cheio, sabe como é? Ninguém gosta de gente feia, quem nasce feio só se fode. Eu sei disso, fui feio pra cacete na adolescência. E como disse Joãozinho Trinta: “Pobre gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”. E universitário, claro, meu amigo Joãozinho. Lá na faculdade, Universidade Infernal Paulista, eu curso Ciências Sociais e todo mundo quer salvar a terra, todo mundo quer discutir miséria e valorizar a “cultura regional tradicional”. Um monte de molequinho, playboy, maconheiro, que nunca chegou perto dum pobre de verdade, nunca sentiu o cheiro azedo de um viciado em crack, nem comeu churrasco de sebo no fim de semana... E sorte deles! Ninguém deveria ter que conviver com essas belezas exóticas, o mundo tinha que ter sido escrito assim ó: um poema parnasiano.
Lembro até hoje do dia em que minha escola foi fazer uma excursão pra visitar o zoológico humano, abre aspas: “periferia”. Era uma escola de padres, muito caridosa e a intenção dos padrecos era levar o pessoal pra conhecer a REALIDADE. A realidade assim, no duro, sem erro de impressão, com r maiúsculo mesmo, meu bem. Eles resolveram pôr minha classe numa perua pra doar cesta básica lá numa casa onde o filho tava preso e a irmã tava morrendo de AIDS. Nossa, gente, que educativo! Fiquei puto da vida e me senti numa excursão pro Circo de Aberrações. Algumas pessoas estavam levando o negócio a sério, outros estavam de saco cheio, outros iam se sentir muito tocados e começar a doar um real de dízimo na igreja ou fazer caridade. Ou dar uns trocados pros moleques que vinham pedir moedas perto dos trailers de lanche. Trocados não, comida ou roupa porque pra pobre não se pode dar dinheiro... Vai que eles compram droga, né? Meu Deus do céu, esses pobres são fogo, se a gente não toma conta os bichinhos vão lá e gastam dinheiro em pinga! Então vamos lá com a perua dos padres, dar uma cesta básica e ver como é estar morrendo aos poucos de HIV. Assim, a molecada pensa duas vezes quando for transar sem camisinha, porque a AIDS é uma das poucas coisas realmente democráticas no mundo, tal qual morte e dor de corno. Deveriam incluir a AIDS na constituição dos eSTADOS uNIDOS, afinal, não são eles os defensores da liberdade e da democracia?
Bem, eu já estava praguejando dentro da perua, mas isso era esperado, afinal, eu era o rebelde da classe, não acreditava em dEUS e tinha uma banda de rock. Nossa senhora, como eu era um garoto mal! Talvez eu até conseguisse limpar a bunda sozinho com um pouco de paciência. Enfim, estávamos saindo da escola e, sem que eu ficasse muito surpreso, a merda da perua começa a guiar em direção à minha casa. HÁ,HÁ,HÀ, já até podia ver a cena. Essa é a casa do coleguinha de vocês, Ernesto Samsa. A mãe dele é professora e vive com o cheque especial estourado, o vô dele ajuda a família e eles tomam refrigerante todo fim de semana. Ou talvez, eu tivesse me esquecido, mas a Gabriela podia estar com AIDS e o Marcelo preso. Não, a perua não parou em casa. Eu também era mais um bundão da classe média. Baixa, mas classe média: com escola, comida, televisores e carro na garagem. dEUS seja louvado, já nos dizia a velha nota de um real.
Bem, como eu ia escrevendo: a perua não parou em casa. Parou ali na rua transversal, no vizinho. Há meio quarteirão do meu lar doce lar. Lindo, se algum vizinho me vê naquela comitiva da ONU o que vão pensar? Ou vou ser o cara mais metido do bairro, ou talvez me torne um São Francisco de Assis auxiliando todos que moram lá perto, com cestas básicas e palavras de esperança. Nem a pau, já até lembrei quem é o tal que ta preso, o Tiziu, amigo dum conhecido do meu irmão. Os dois tinham assaltado uma vendinha, pelo que eu sabia, viviam envolvidos em treta. To fora, a perua pára na frente. Eu pulo rápido e ando uns 30 passos.
Sabe o que eu to pensando agora? Talvez eu tenha ficado com vergonha pelo zoológico ser minha vizinhança, talvez todo mundo que estivesse naquela perua nem se lembre desse dia. Pra todos pode ter sido só um dia qualquer, no qual fomos dispensados um pouco mais cedo. Quem sabe, se você cutucar a memória de um daqueles moleques, cinco anos depois, eles lembrem da boa ação que fizeram. E lembrem também de como comentaram com seus pais durante o almoço, assim que chegaram a suas casas. E como pensaram: “Sou um felizardo, tenho comida e minha irmã não está morrendo de AIDS, numa casa podre com muro de troncos de madeira”.
Eu não esqueço, essa merda de dia ficou marcada no meu diário de perdedor, fiquei puto na hora. Trinta passos e to na minha casa: bonita e espaçosa, tem três televisores e a gente sempre toma refrigerante no fim de semana. Coca-Cola, nada de “genéricos”. Minha casa é um feudo da classe média, em meio à barbárie, mesmo assim eu não tenho o prazer de esquecer a merda do mundo. Eu não tenho esse direito e dou graças a dEUS por isso. Aquele dia os moleques da escola de padres conheceram os pobres, voltaram para suas casas, como se tivessem assistido a um bom filme, e dormiram tranqüilos. Quando uma menina rica foi estuprada e um jovem de classe-média foi seqüestrado e morto eles clamaram por segurança, preocuparam-se com as “questões sociais”, ou deixaram de sair de casa no fim-de-semana. Depois esqueceram o resto do mundo, de novo. Eu to alerta, essa porra é um campo minado. Enquanto tiver gente comendo churrasco de sebo no fim de semana, ao mesmo tempo em que nossas famílias vão comer fora algo requintado, a panela de pressão vai permanecer apitando. E um dia ela estoura.
Bosta, e eu continuo sem mulher e sem poesia concreta. Pra que servem poesia concreta e mulheres num mundo desses? Li um conto lindo dum colega de ciências sociais sobre “um pé de manga que crescia nos céus límpidos de sua imaginação multicolor”. Talvez seja uma metáfora sobre a vida, a “nossa vida”, ou talvez ele só tenha um pau pequeno. Sei lá, nessa merda de mundo eu não perco tempo escrevendo firula, não sei se isso tem utilidade. Agora, uma mulher eu sei que pode adiantar pra alguma coisa ou outra. Isso que me deprime.
(17/07/05)
5.2.08
Colegiais passeiam no zoológico humano.
Cuspido por Di Giacomo às 16:18
Marcadores: conto, fred di giacomo
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